O que aconteceu exatamente quando o homem caiu, não sabemos; mas se é legítimo fazer conjeturas, ofereço o seguinte quadro: um "mito" no sentido socrático,[1] uma narrativa plausível.
Durante longos séculos Deus aperfeiçoou a forma animal que iria tomar-se o veículo da humanidade e a imagem de Si mesmo. Ele deu-lhe mãos cujo polegar podia ser aplicado a cada um dos dedos, e mandíbula, dentes e garganta articulados, assim como um cérebro suficientemente complexo para executar todos os movimentos materiais dando Julgar ao pensamento racional. A criatura pode ter existido durante séculos neste estado antes de tomar-se homem: pode ter sido até mesmo inteligente o bastante para fazer coisas que o arqueólogo moderno aceitaria como prova de sua humanidade. Mas não passava de um animal porque todos os seus processos físicos eram dirigidos a fins puramente materiais e naturais. Então, na plenitude do tempo, Deus fez descer sobre este organismo, tanto na sua psicologia como fisiologia, uma nova espécie de consciência que podia dizer "eu" e "mim", que podia olhar para si mesma como um objeto, que conhecia Deus, que podia fazer juízos quanto à verdade, beleza e bondade, e que estava tão acima do tempo que podia percebê-lo passar.
Esta nova consciência governava e iluminava o organismo inteiro, enchendo de luz cada uma de suas partes; não sendo, como o nosso, limitado a uma seleção dos movimentos existentes numa parte dele, a saber, o cérebro. O homem era então todo consciência. O iogue moderno alega - seja com verdade ou falsamente - ter sob controle essas funções que para nós fazem praticamente parte do mundo exterior, como a digestão e a circulação. O primeiro homem tinha eminentemente este poder. Seus processos orgânicos obedecem à lei da sua própria vontade e não à da natureza. Seus órgãos enviavam apetites ao tribunal da vontade, não porque fossem obrigados a isso, mas porque assim o desejavam. O sono não era para ele o estupor em que caímos, mas um repouso consciente e voluntário – permanecia acordado para gozar do prazer e necessidade do sono. Desde que os processos de decadência e reparo de seus tecidos eram da mesma forma conscientes e obedientes, não é fantasioso supor que a duração de sua vida fosse um aspecto que ficava praticamente a seu critério.
Pelo fato de comandar inteiramente a si mesmo, ele dominava todas as formas inferiores de vida com as quais entrava em contato. Encontramos ainda hoje alguns raros indivíduos que possuem um misterioso poder para domesticar feras. O homem paradisíaco gozava deste poder de maneira notável. O velho quadro dos animais brincando diante de Adão e fazendo-lhe festas pode não ser inteiramente simbólico. Até mesmo agora mais animais do que podemos supor estão prontos a adorar o homem se lhes for dada uma oportunidade razoável: pois o homem foi feito para ser o sacerdote e mesmo, num certo sentido, o Cristo, dos animais - o mediador através do qual eles
apreendem tanto do esplendor divino quanto sua natureza irracional permite. E Deus, ara tal homem, não representava um plano inclinado, escorregadio. A nova consciência tinha sido feita para repousar em seu Criador, e assim fez.
Por mais rica e variada que fosse a experiência do homem em relação a seus semelhantes (ou semelhante) quanto à caridade e amizade, ao amor sexual, ou quanto aos animais ou ao mundo que o rodeava, pela primeira vez reconhecido como belo e terrível, Deus vinha em primeiro lugar no seu amor e pensamentos, e isso sem qualquer esforço penoso. Num perfeito movimento cíclico, o ser, o poder e a alegria, desciam de Deus para o homem na forma de amor obediente e adoração extática: e neste sentido, embora não em todos, o homem era então verdadeiramente o filho de Deus, o protótipo de Cristo, representando perfeitamente na alegria e relaxamento de todas as faculdades e sentidos aquela rendição filial que Nosso Senhor representou nas agonias da crucificação.
Julgado pelos seus artefatos e talvez até mesmo pela sua linguagem, esta criatura abençoada era sem dúvida um selvagem. Tudo o que a experiência e a prática podem ensinar estava ainda para ser aprendido: se cortava gravetos, com certeza era muito desajeitado. Pode ter sido absolutamente incapaz de expressar de forma conceitual sua experiência paradisíaca. Tudo isso é irrelevante. De nossa infância, podemos lembrar que antes dos mais velhos nos considerarem capazes de "compreender" qualquer coisa, já tínhamos experiências espirituais tão puras e momentosas como quaisquer outras que tenhamos tido desde então, embora não fossem naturalmente tão ricas em seu contexto real.
Do próprio cristianismo podemos aprender que existe um nível - a longo prazo o único nível de importância - em que os eruditos e os adultos não têm qualquer vantagem sobre os simples e as crianças. Não tenho dúvidas de que se o homem paradisíaco surgisse agora entre nós, iríamos considerá-lo um completo selvagem, uma criatura a ser explorada ou, pelo menos, tratada com condescendência. Apenas um ou dois, e esses estariam entre os mais santos dentre nós, iriam lançar um segundo olhar para essa criatura nua, barbuda, de fala arrastada: mas eles, dentro de poucos minutos, cairiam a seus pés.
Não sabemos quantas dessas criaturas Deus fez, nem por quanto tempo continuariam no estado paradisíaco. Mas, mais cedo ou mais tarde, elas caíram. Alguém ou alguma coisa lhes sussurrou que poderiam tornar-se como deuses - que podiam deixar de manter Suas vidas na direção do Criador e aceitar todos os seus prazeres como dádivas não convencionais, como "acidentes" (no sentido lógico) surgidos no decorrer de uma vida dirigida à adoração de Deus e não a esses prazeres.
Da mesma forma que o jovem deseja uma mesada do pai, que possa considerar como sua, com a qual faz seus próprios planos (e com justiça, pois o pai é afinal de contas um semelhante) eles também desejavam agir por conta própria, cuidar de seu futuro, planejar para o seu prazer e segurança, ter um meum do qual sem dúvida pagariam um tributo razoável a Deus em termos de tempo, atenção, e amor, mas que em todo caso era deles e não dEle. Eles queriam, como dizemos hoje, ser "seus próprios donos". Mas isso significa viver uma mentira, porque na verdade não somos donos de nós mesmos, nossa alma não é nossa. Eles queriam um lugar no universo de onde pudessem dizer a Deus: "Este negócio é nosso e não seu." Mas não existe um canto assim. Eles queriam ser substantivos, mas eram, e serão eternamente, simples adjetivos. Não temos idéia em que ato, ou série de atos, o desejo contraditório, impossível, encontrou expressão. Por tudo o que sei, pode ter ligação com o ato de comer literalmente uma fruta, mas a questão não é importante.
Este ato de obstinação por parte da criatura, que constitui uma absoluta falsidade em relação à sua posição de criatura, é o único pecado que pode ser concebido como a Queda. A dificuldade com respeito ao primeiro pecado é que ele deve ser hediondo, caso contrário suas conseqüências não seriam tão terríveis, embora seja ao mesmo tempo algo que um ser, livre das tentações do homem decaído, possa ter possivelmente praticado. O desvio de Deus para o "eu" cumpre ambas as condições. É um pecado possível até mesmo ao homem paradisíaco, pois a simples existência de um "eu" – o mero fato de o chamarmos "mim" - inclui, desde o princípio, o perigo da auto-idolatria. Desde que eu sou eu, devo realizar um ato de auto-rendição, por menor ou mais fácil que seja, vivendo para Deus em lugar de para mim mesmo.
Este é o "ponto fraco" na própria natureza da criação, o risco que Deus aparentemente julga valer a pena aceitar. Mas o pecado foi hediondo porque o "eu" que o homem paradisíaco teve de render não continha uma resistência natural ao ato de render-se. Seus dados, por assim dizer, eram um organismo psicofísico inteiramente sujeito à vontade e uma vontade inteiramente disposta, embora não compelida, a voltar-se para Deus. A autoentrega que ele praticou antes da Queda não envolveu qualquer esforço, mas apenas a agradável vitória sobre uma auto-aderência infinitesimal que causou prazer ao ser vencida - no que vemos uma leve analogia na auto-entrega extasiada dos amantes de hoje. Ele não tinha, portanto, qualquer tentação (no sentido dado por nós) para escolher o "eu" – nenhuma paixão ou inclinação voltada obstinadamente para esse lado – nada além do simples fato de que o ego era ele mesmo.
Até esse momento o espírito humano tinha estado em pleno controle do organismo humano, e sem dúvida esperava que reteria esse controle quando deixou de obedecer a Deus. Mas sua autoridade sobre o organismo não passava de uma autoridade delegada que perdeu quando deixou de ser o delegado de Deus. Pelo fato de ter-se afastado, na medida do possível, da fonte de seu ser, ele também rompeu sua ligação com a fonte de poder. Quando dizemos quanto às coisas criadas que A domina B, isto deve significar que Deus domina B através de A. Duvido que fosse intrinsecamente possível para Deus continuar a ter domínio sobre o organismo através do espírito humano quando este se rebela contra Ele. Pelo menos, não o fez. Passou a governar o organismo de maneira mais extrema, não mais pelas leis do espírito, mas pelas da natureza.[2] Assim sendo, os órgãos, não mais governados pela vontade do homem, caíram sob o controle das leis bioquímicas comuns e sofreram as interações que essas leis provocaram na forma de dor, senilidade e morte.
Os desejos começaram a surgir na mente do homem, não de conformidade com a escolha feita pela sua razão, mas como os fatos bioquímicos e ambientais os provocavam. A própria mente sujeitou- se às leis psicológicas da associação e outras que Deus tinha feito para governar a psicologia dos antropóides superiores. E a vontade, apanhada na maré da simples natureza, não teve outro recurso senão restringir alguns dos novos pensamentos e desejos pela força, e esses rebeldes inconformados se tomaram o subconsciente como o conhecemos hoje. O processo, segundo penso, não foi comparável à simples deterioração como pode ocorrer agora no indivíduo da espécie humana; mas tratou-se de uma perda de posição como espécie. O que o homem perdeu com a Queda foi sua natureza original específica. "Tu és pó e ao pó voltarás." O organismo total que se elevara até sua vida espiritual voltou à condição simplesmente natural de que, ao ser feito, tinha saído – assim como, muito antes na história da criação, Deus elevara a vida vegetal para tomar-se o veículo da animalidade, e o processo químico para tornar-se o veículo da vegetação, e o processo físico para tornar-se o veículo do químico. O espírito humano, de senhor da natureza humana, passou a ser um simples hóspede em sua própria casa, ou até mesmo um prisioneiro; a consciência racional transformou-se no que agora é - um facho de luz vacilante repousando em uma pequena parcela dos movimentos cerebrais. Mas esta limitação dos poderes do espírito foi um mal menor do que a corrupção do espírito em si. Ele se afastara de Deus e se tomara o seu próprio ídolo; e assim, embora pudesse ainda voltar a Deus,[3] só podia fazê-lo mediante um grande esforço, e sua indignação era dirigida ao "eu".
Dessa forma o orgulho e a ambição, o desejo de ser belo a seus próprios olhos e de oprimir e humilhar todos os rivais, a inveja e a busca incessante de mais e mais segurança, eram agora as atitudes que tomava com maior facilidade. Ele não era apenas um rei fraco sobre a sua natureza, mas um mau rei: enviando ao organismo psicofísico desejos bem piores do que este os enviava a ele. Esta condição foi transmitida a todas as gerações posteriores pela hereditariedade, pois não se tratava simplesmente do que os biólogos chamam de uma variação adquirida; mas da emergência de um novo tipo de homem – uma nova espécie, jamais feita por Deus, tinha passado a existir mediante o pecado. A mudança pela qual o homem passara não era paralela ao desenvolvimento de um novo órgão ou um novo hábito; tratava-se, entretanto, de uma alteração radical de sua constituição, um distúrbio da relação entre as suas partes componentes, e uma perversão interna de uma delas.
Deus poderia ter suspenso este processo através de um milagre: mas isto - falando por metáfora algo irreverente - seria declinar o problema que Deus, Ele mesmo, tinha estabelecido ao criar o total de um mundo contendo agentes livres, apesar de, e por meio de, sua rebelião contra Ele. O símbolo de um drama, uma sinfonia, ou uma dança, é útil aqui para corrigir um certo absurdo que pode surgir se falarmos demasiado a respeito de Deus planejar e criar o processo do mundo para o bem e de esse bem ser frustrado pelo livre-arbítrio das criaturas.
Isto pode levantar a idéia ridícula de que a Queda tomou Deus de surpresa e atrapalhou os seus planos, ou então - mais ridículo ainda - que Deus planejou tudo para condições que, Ele bem sabia, jamais iriam ser cumpridas. De fato, como é natural, Deus viu a crucifixão no ato de criar a primeira nebulosa. O mundo é uma dança em que o bem, procedente de Deus, é perturbado pelo mal que sobe das criaturas, e o conflito resultante é resolvido pela suposição do próprio Deus da natureza sofredora que o mal produz. A doutrina da Queda voluntária afirma que o mal que produz assim o combustível ou a matéria-prima para o segundo e mais complexo tipo de bem não é contribuição de Deus mas do homem. Isto não quer dizer que se o homem tivesse permanecido inocente, Deus não poderia então ter inventado um todo sinfônico igualmente esplêndido - supondo que insistamos em fazer perguntas desse tipo.
Mas deve ser sempre lembrado que quando falamos do que poderia ter acontecido, de contingências fora de toda realidade, não sabemos na verdade do que estamos falando. Não existem tempos nem lugares fora do universo existente em que tudo isto "poderia
acontecer" ou "poderia ter acontecido". Penso que a maneira mais significativa de afirmar a verdadeira liberdade do homem é dizer que se existirem outras espécies racionais além dele, em alguma outra parte do universo atual, então não é necessário supor que elas também tenham decaído.
[1] Isto é, um relato do que pode ter sido o fato histórico. Não devendo ser Confundido com "mito" na opinião do Dr. Niebuhr (I.e., uma representação simbólica da verdade não-histórica.)
[2] Este é um desenvolvimento do conceito de Hooker sobre a Lei. Desobedecer á sua própria lei (1.e., a lei que Deus faz para um ser como você) significa ver-se obedecendo a uma das leis inferiores de Deus: e.g., se ao andar num pavimento escorregadio, você negligenciar a lei da prudência, irá encontrar-se repentinamente obedecendo à lei da gravidade.
[3] 0s teólogos irão notar que não pretendo fazer aqui qualquer contribuição á controvérsia pelágioagostiniana. Quero indicar unicamente que tal volta a Deus não era nem é uma impossibilidade. Onde fica a iniciativa de tal retomo é uma questão sobre a qual não me atrevo a dizer nada.
C. S. Lewis em O Problema do Sofrimento
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